“TODOS CONTRA A PEDOFILIA”, O INÍCIO
- tcpbrasiloficial
- 13 de abr.
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Texto original do primeiro capítulo do livro “Todos contra a pedofilia”, escrito em Divinópolis, em dezembro de 2013.
Naquela manhã fria do inverno de 2006 o céu estava completamente azul sobre a pequena e histórica cidade de Itapecerica, interior de Minas Gerais. O homem idoso entrou na sala de audiências do Forum local. Apesar da idade de mais de setenta anos, Ares (nome fictício) era vigoroso e robusto. Cabelos fartos e grisalhos.
Camisa branca, barba aparada, sobrancelhas unidas e aparentando uma ligeira surpresa, como se dissesse: “há algum problema aqui Doutor?”.
Mas não havia surpresa. Há cerca de um mês o acusado já se encontrava preso, por ter sido encontrado em flagrante delito, abusando sexualmente de duas crianças, uma de nove e outra de dez anos de idade. Eu, Promotor de Justiça da Comarca, já o havia processado e ele próprio já conhecia em detalhes a acusação pela qual responderia naquele momento.
A denúncia, peça de acusação formal, atribuía ao réu, que ora era levado a interrogatório, os crimes de tentativa de estupro (artigo 213 combinado com artigo 14, inciso II) e atentado violento ao pudor (artigo 214), mediante violência presumida (artigo 224, letra ‘a’), conforme o Código Penal Brasileiro em vigor na época (antes da Lei 12.051/07.08.2009, chamada “Lei da Dignidade Sexual”), e continha os seguintes termos:
Consta do incluso inquérito policial, que o denunciado, desde meados do mês de julho de 2006, vem abusando sexualmente das menores FAAO (10 anos de idade – Certidão de Nascimento às fls. ...) e AAP (9 anos de idade – Certidão de Nascimento às fls. ...).
O denunciado, valendo-se da ingenuidade das crianças, várias vezes as levou para o interior de sua casa, localizada ..., nesta cidade, onde lhes prometeu e/ou deu doces e dinheiro em troca de “favores sexuais”.
Segundo palavras do próprio denunciado, ele “se diverte com elas”, se esfregando nos corpos das crianças nuas, especialmente as partes íntimas (vagina, nádegas e região peitoral); fazendo com que as crianças manipulassem suas partes íntimas; e praticando sexo oral com as meninas: em suas palavras, obrigando-as a “chupar o seu pau”.
Alem de praticar os atos libidinosos diversos da conjunção carnal acima mencionados, o denunciado já tentou por diversas vezes manter relação sexual vaginal com ambas as crianças, apenas não conseguindo seu intento por motivos alheios à sua vontade. Segundo seu próprio relato “que, já tentou enfiar, mas a natureza não ajuda e a menina pula igual cabrita, mas ajudando com o dedo vai”.
Na data do dia 16/08/2006, mais uma vez o denunciado abusou sexualmente de uma criança: por volta das 20:00 horas, o denunciado levou AAP (9 anos de idade) para sua casa (do denunciado), onde tomaram banho juntos e “se alisaram mutuamente”.
Em seguida o denunciado levou a menor ao quarto, onde, mais uma vez, esfregou e introduziu o dedo na vagina da criança e tentou introduzir o pênis. A menina chegou a gritar de dor: “ai, ai, ai, ta doendo!”. Os gritos foram ouvidos por vizinhos e transeuntes, que se assustaram e olharam para o interior da referida casa, chegando inclusive a ver o denunciado e a vítima nus.
Os vizinhos acionaram a Policia Militar, que compareceu ao local e encontrou a criança completamente nua e deitada na cama do denunciado, enquanto este colocava suas calças às pressas.
O denunciado foi preso em flagrante delito (APF – fls. ...) e confessou que praticou tais atos inúmeras vezes (fls. ...).
Os pais das menores ofereceram representação em desfavor do denunciado e declaram-se pobres no sentido legal (fls. ...).
Para ser ouvido em sua defesa, como manda a Lei, Ares sentou-se perante o jovem Juiz de Direito, Dr. Guilherme, ao lado de sua Defensora e na presença deste Promotor de Justiça e da Escrevente Judicial. Então, as palavras que saíram de sua boca, bem como seus gestos, estarreceram a todos. Por mais que soubéssemos os fatos, os quais não podiam ser negados e já haviam sido parcialmente confessados, é sempre chocante presenciar a declaração.
A princípio Ares manteve sua expressão de surpresa e disse ao Magistrado que “não fazia nada não” com as meninas. Logo em seguida declarou sua intenção dizendo “o quê que eu vou fazer? Eu estou velho desse jeito... se o negócio funcionasse... tudo bem... eu tinha acabado com elas...”. O réu acompanhou esta declaração com um gesto obsceno de dedo em riste, causando constrangimento até em sua defensora. Continuou dizendo, em suas palavras, que “somente passava as mãos nelas, que elas não têm peito, mas passava a mão da cabeça aos pés; que chegava a passar a mão na vagina das meninas apenas para satisfazê-las” (transcrição do interrogatório). Questionado pelo Juiz se elas aparentavam gostar, respondeu: “é claro que elas gostam!”.
Ele falava de duas meninas de nove e dez anos de idade como se fossem duas prostitutas ao seu dispor.
Em seguida continuou seu relato de atrocidades: dizendo que as vaginas das meninas não tinham pelos “eram lisinhas”; contando da manipulação de seu próprio pênis pelas meninas: “pegar com a mão elas pegavam, alisavam, fazer o quê? Se não tem vergonha para fazer”. Tudo isso acompanhado por novos gestos obscenos e constrangedores. Informou ainda sexo oral, realizado mediante sua “ordem” e alegou que os pais não ligavam que as meninas frequentassem sua casa, pois ali elas “enchiam a barriga” e até ganhavam uns trocados, etc.
Quando o Magistrado perguntou sobre penetração com os dedos, o réu alegou de forma displicente que “passava a mão só assim...” e, ao dizer isso, esfregou seus dedos nodosos na mesa do Juiz, como se alisasse e manipulasse os órgãos sexuais das meninas... e continuou a fazê-lo, olhando para a própria mão com um esboço de sorriso, enquanto o Juiz, em silêncio momentâneo, tentava formular nova questão, visivelmente abalado e buscando manter o seu controle.
Dali em diante processo correu de forma regular e no prazo legal. As provas foram apresentadas nos dias que se seguiram. Fiz a acusação que me cabia. Finalmente Ares foi julgado e condenado. É importante que se diga: o réu não era doente mental e nem estava senil. Sabia muito bem o que fazia. Parecia que não era primeira vez que praticava tais atos, embora não houvesse registros anteriores. Discursava como se perpetrasse o abuso sexual das meninas como coisa normal, esperada dele como “homem” e desejada pelas vítimas. Meses depois, durante o cumprimento da pena, Ares morreu na cadeia. Morte natural, causada por problemas cardíacos. Teve atendimento médico e sua morte foi investigada pela polícia.
Durante o processo tomamos depoimentos das vítimas e de seus pais. Meninas pobres oriundas de famílias desestruturadas. A mãe de uma delas alegou também ter sido vítima de abuso sexual na infância. Lembro-me bem de tudo: uma das meninas era loura e outra morena, ambas bonitas, franzinas e apresentando-se extremamente tristes e desiludidas. Mostrando em seus olhos que toda a inocência lhes fora arrancada, como de fato aconteceu. As meninas, de início, atraídas por comida, trocados e doces, e depois constrangidas com ameaças e violência, tiveram atacados todos os seus direitos de crianças e de seres humanos. Transformaram-se em brinquedos nas mãos de um criminoso perverso.
Conforme providenciado pelo Ministério Público desde o primeiro momento, as vítimas foram (e são) atendidas pelo Conselho Tutelar, mas as sequelas são indeléveis e até hoje as meninas são extremamente desajustadas, carecendo de constante acompanhamento.
Esse não foi o primeiro e, nem de longe, o mais grave caso de crime ligado à pedofilia de que tomei conhecimento ao longo da vida, nos mais de vinte anos em que sou Promotor de Justiça e, especialmente, no decorrer da CPI da Pedofilia. Trata-se de um caso típico de abuso sexual. Naquele dia em que ouvi o relato do criminoso, o qual tenho gravado em papel e vídeo, mas principalmente em minha alma, entendi melhor que muito precisa ser feito para que tenhamos o mínimo de proteção à infância e a juventude.
É preciso investir na prevenção, desde a escola fundamental, com esclarecimento de alunos, pais e professores, até as universidades, passando pelos formadores de opinião – relativos a todas as classes sociais e níveis socioeconômicos – profissionais da área de atendimento à criança e ao adolescente, cuidadores em geral, agentes públicos, grande público: todos, enfim.
É preciso atendimento adequado às vítimas. Tratamento médico relativo às sequelas físicas. Acolhimento psicológico, social e familiar. Sistemas eficientes de tratamento das vítimas, que lhes proporcione conforto, dignidade, respeito e diminuição das consequências nefastas que sempre surgem de tais atos.
É preciso tratamento penal justo e rígido ao autor de crimes sexuais contra crianças e adolescentes: o criminoso pedófilo. A punição justa e o fim da impunidade. Trata-se de prevenção, já que o criminoso pedófilo é, via de regra, reincidente e dificilmente age somente uma vez ou contra uma só vítima. Ao punir criminosos dessa espécie estamos evitando que outras crianças e adolescentes sejam novas vítimas, convertidos em brinquedos sexuais de indivíduos perversos. O pedófilo não é louco, não é doente mental, é criminoso consciente e plenamente imputável na esmagadora maioria das vezes.
É preciso CORAGEM, conhecimento e disposição. Temos que conhecer os fatos para preveni-los e enfrentá-los.
A vocação para a Justiça como ideal está no peito de toda pessoa de bem e, afinal, todos, sem exceção, são responsáveis pela proteção da criança e do adolescente.
Ao longo dessa obra relatarei diversos outros episódios, sempre com o objetivo de conhecer para prevenir. Os relatos daquilo que vi, ouvi, li, fotografei e filmei podem ser, por vezes, chocantes e causadores de revolta. Tais reações são comuns ao ser humano. Seria mesmo estranho que não nos irássemos diante de tanta atrocidade.
Somente um insensível, desprovido de empatia e solidariedade, não reagiria diante de tanta atrocidade cometida contra crianças e adolescentes. Mas que fique bem claro que o objetivo é a conscientização para a prevenção.
Cultivar raiva, rancor, ódio ou revolta é contraproducente. É como “tomar veneno e querer que o inimigo morra”. Tais sentimentos negativos, mais que inúteis, são prejudiciais a quem os tem e à sociedade em geral.
Já perdi a conta de vezes em que ouvi frases como “Se fosse com meu filho eu mataria o abusador”. Entendo a reação, mas não acredito em ódio. Não creio na raiva. Não aceito a vingança. A indignação sim, essa é importante e necessária. É preciso transformar o sentimento inicial de raiva, um dos chamados “sentimentos precários”, em algo útil, ou seja, a indignação.
Raiva, medo, vingança, são sentimentos precários. É impossível não os experimentar, como é impossível não sentir fome, frio e sede. O que faz a diferença é exatamente o que fazemos com tais sentimentos. Jamais devemos cultivá-los, mas sim transformá-los em sentimentos nobres, que sejam força para lutar contra a injustiça. Tornar raiva em indignação, ódio em força, medo em coragem.
Sofri e sofro ao tomar conhecimento da miséria dos crimes de abuso e exploração sexual cometidos contra crianças e adolescentes, os chamados “crimes ligados à pedofilia” ou “crimes de pedofilia”. Muitas vezes fiquei extremamente triste ao tomar conhecimento da violência covarde que fora cometida contra as vítimas. É mesmo deprimente ouvir os relatos dos criminosos, mas muito mais triste, literalmente cortante, é ouvir as narrações das crianças vítimas de abuso sexual... quando optam por falar, já que a regra é o silêncio (como veremos). Ao longo de minha vida profissional já ouvi tais relatos milhares de vezes, diariamente, mas sempre me emociono ao ouvir uma criança. Emoção subjugada pelo profissionalismo, mas que rebrota na forma de indignação e trabalho incansável.
Certa ocasião, ainda no início do exercício como Promotor de Justiça, uma menina, que era obrigada pelo pai perverso e criminoso a realizar sexo oral, dirigiu-se a mim e, ao notar meu espanto diante de sua narração, perguntou: “mas todo pai não faz isso com a filha não?”. Respondi (e até hoje sinto a tristeza tomar conta dos meus sentimentos como naquele momento) “não, criança, os pais não fazem isso com suas filhas não” (ou, não deveriam fazer).
Graças a Deus sinto isso até hoje, embora calejado diante de tais declarações e modificado pela noção do mal.
Quando eu ouvir tais relatos e não sentir mais nada (...e peço a Deus que tal dia nunca chegue) não sirvo mais para ser Promotor de Justiça. A indignação que isso nos causa é transformada em força para lutar contra o crime. Por vezes é só o que vence a tristeza e nos leva adiante.
O mal existe. É preciso que saibamos. Sei que não é fácil aceitar tal afirmação. Mas o maior trunfo do mal é justamente nos fazer acreditar que ele não é real. Acredito que a maioria das pessoas tem bons sentimentos, mas acredito também que existem pessoas que realizam o mal simplesmente porque querem. Porque optam por realizá-lo. Porque são egoístas, insensíveis e não se importam com os outros.
No dizer da grande escritora e médica psiquiatra, minha querida amiga Ana Beatriz Barbosa Silva, autora da obra “Mentes Perigosas – o psicopata mora ao lado”, existe a “maldade original de fábrica”. O Pedófilo Criminoso é uma espécie de psicopata e, como tal, é perverso por natureza, não sendo dotado de sentimentos nobres, mas totalmente dedicado à satisfação de suas necessidades, a qualquer preço e em prejuízo de quem quer que seja.
Diante do mal, em todas as suas formas e especialmente representado pelos crimes sexuais contra crianças, que a raiva não nos vença ou nos torne injustos. Que a indignação seja a força que nos impulsiona para que possamos tomar e exigir das autoridades medidas sérias e eficientes na proteção do nosso bem mais precioso, que é a criança, contra uma das maiores atrocidades que o ser humano pode cometer: os crimes de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes, os crimes ligados à pedofilia.
Essa força, que vem do desejo de Justiça, me obriga a escrever e falar, usando de todos os meios éticos para a propagação da mensagem de proteção à criança. Acredito que, quando Deus colocou em meu caminho a visão de tanto mal e permitiu que meu coração fosse tomado pela indignação, Ele me obrigou a lutar.
Trataremos de casos como o que foi relatado acima, de abuso sexual, e também abordaremos a exploração sexual nas suas mais diversas formas, desde a prostituição infantojuvenil até a pornografia infantil, passando pela pedofilia na internet, propagada pelos sites de pornografia infantil e pelos assédios específicos de crianças e adolescentes na forma do grooming (assédio malicioso), ou por outros meios.
É importante salientar que os casos de crimes ligados à pedofilia não são novidade e nem são característica de classes sociais mais baixas, como muitos creem. O abuso e a exploração sexual de crianças e adolescentes acontecem desde sempre e em todas as classes sociais e níveis socioeconômicos. Acontecem praticados por homens, em sua grande maioria, mas também por mulheres. Acontecem em todas as religiões e também na ausência de religião. São perpetrados contra indivíduos do sexo masculino e feminino, de idades que variam de poucos meses de vida a adolescentes próximos da maioridade legal.
No dizer de Magno Malta, Senador criador e Presidente da “CPI da Pedofilia”: “A pedofilia no Brasil está nas colunas sociais. A pedofilia no Brasil mora em condomínio de luxo. A pedofilia no Brasil veste toga, veste estola. A pedofilia no Brasil tem divisa, tem patente. A pedofilia no Brasil tem mandato. A pedofilia no Brasil reza missa e faz culto”.
Mas seja como for praticado, ou seja, quem quer que o cometa, o crime de pedofilia é sempre cruel e covarde, e sempre deixa sequelas graves na sua vítima: a criança e o adolescente. Por isso é tão danoso.
A criança e o adolescente são o que há de mais importante neste mundo, depois de Deus. Essa importância é evidente e tem suas bases, não somente em convicções religiosas, morais, éticas ou sociais, mas até mesmo biologicamente é preponderante o instinto de perpetuação da espécie, que gera a necessidade premente de reprodução e proteção da prole, ou seja, dos nossos filhos: de cada criança e cada adolescente.
A Lei, como fruto da vontade do povo, no Estado Democrático de Direito, como no Brasil, não poderia estabelecer de forma diferente e, por isso mesmo, a Constituição Brasileira elegeu como a prioridade das prioridades o direito da criança e do adolescente.
Cabe lembrar que a Constituição de 5 de outubro de 1988 é a Lei mais importante do país. Nenhuma regra brasileira pode ser contrária ao que está disposto na Constituição, que ocupa o topo da hierarquia legal brasileira. Todas as Leis Federais, Estaduais e Municipais, assim como qualquer regulamento, devem obedecer ao disposto na chamada “Carta Magna”. Evidente, pois, sua importância fundamental em nosso sistema legislativo.
Somente uma vez o termo “absoluta prioridade” foi utilizado na Constituição, e o foi em seu artigo 227, quando estabelece, entre os deveres e objetivos do Estado, ou seja do Brasil como país, juntamente com a sociedade e a família, assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem os direitos à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
“Constituição do Brasil/1988. Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
Tal artigo deu origem à Lei Federal número 8.069, de 13 de julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que é uma Lei boa e, com todas as críticas que merece, trouxe avanços legais e sociais, mas que precisa da respectiva infraestrutura para ser colocada em prática.
A ECA elevou a criança à qualidade de pessoa sujeita de direitos, deixando para trás a noção de criança e adolescente como objetos. Na legislação anterior (Código de Menores, Lei 6.697, de 10 de outubro de 1979) tratava-se simplesmente de “menores”, quase como objetos. Hoje devemos encarar crianças e adolescentes como pessoas em desenvolvimento, que merecem dignidade e respeito e, nessa condição especial, devem ter seus direitos garantidos com prioridade absoluta. É a doutrina da proteção integral.
Mas não basta que tenhamos uma boa Lei, é preciso meios de aplicá-la corretamente. Ter uma boa Lei sem a necessária correspondência em termos de recursos públicos é como ter uma excelente receita e não poder executá-la adequadamente pela falta de ingredientes.
A referida “absoluta prioridade” não é uma realidade, mas precisa de nossos esforços para que de fato venha a ser realidade. A “absoluta prioridade” tem que ser colocada em prática no nosso dia a dia. Basta observar como exemplo que, depois de mais de vinte e três* anos da promulgação do ECA, existem muitos municípios no Brasil que sequer tem um Conselho Tutelar, outros o tem apenas “no papel” e muitos outros funcionam de maneira ineficaz. A rede púbica de assistência à família, ao adolescente e à criança é precária na maioria dos municípios brasileiros.
Considero que é preciso, com urgência, que se dê, de fato, a “absoluta prioridade” a criança e ao adolescente, conforme definido na Constituição Federal e conforme mandam a mente e o coração de toda pessoa de bem.
Afinal de contas não é preciso conhecer a Constituição ou qualquer outra Lei escrita para saber da importância das crianças e dos adolescentes. Até os animais sabem da necessidade de proteção da prole. Se observarmos, por exemplo, uma galinha choca, veremos que ela será capaz de dar sua vida para defender sua prole, representada pelos ovos ou pintinhos que produziu e acolhe. É a natureza demonstrando a prioridade absoluta que deve ser dada ao ser em desenvolvimento.
A criança, que é a pessoa até os doze anos de idades incompletos, assim como o adolescente, que é a pessoa entre doze e dezoito anos incompletos (artigo 2º do ECA), constituem a parcela mais importante de nossa sociedade, estão em formação e representam o futuro do país.
Garantir a observação dos direitos da infância e da adolescência é o único meio seguro e perene de garantir o progresso, a evolução e melhoria de vida para todas as pessoas. É investir no futuro.
Os crimes ligados à pedofilia nos causam tanta indignação, e até mesmo revolta, justamente porque atacam de forma covarde e grave o nosso maior bem: a criança e o adolescente, atingindo todos os seus direitos:
A criança que é vítima de crime ligado a pedofilia tem evidentemente desrespeitados seus direitos à saúde e à vida, uma vez que é agredida fisicamente pelo abuso sexual, que, por muitas vezes, também a leva à morte.
A pessoa em desenvolvimento vítima de crimes ligados à pedofilia (abuso e exploração sexual) tem atacados seus direitos à dignidade, ao respeito e à liberdade: é exposta pela pornografia infantil (por exemplo); tem sua autoestima atacada drasticamente prejudicada pelo abuso e pela prostituição, que a transforma em objeto sexual; se torna depressiva e apresenta sequelas para toda a vida, tendo atingidos, pois, seus direitos à saúde também mental, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização e à cultura.
A criança ou o adolescente, quando vítimas de crimes ligados à pedofilia, muitas vezes perdem seu direito à convivência familiar e/ou comunitária. A grande maioria dos abusos sexuais é praticada dentro de casa, pelo pai ou outro parente próximo. Muitas vezes com a conivência ou diante da negligência da mãe, outras vezes até com sua participação ativa (vide caso de Uberlândia/MG). Tantas outras oportunidades a vítima fica marcada em seu convívio social, como se ela fosse a culpada por ter sido atacada por um criminoso perverso, prejudicando suas relações comunitárias.
Afinal, é dever legal, prioridade absoluta constitucional, e, antes de tudo, obrigação moral de toda família, de todas as parcelas da sociedade e do Poder Público, portanto exatamente de TODOS, colocar cada criança e adolescente “a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Os crimes ligados à pedofilia são a expressão mais cruel de todas essas formas de violência.
A negligência, traduzida na desatenção ou abandono da criança e do adolescente, muitas e muitas vezes cria a situações propícias ao ataque do criminoso pedófilo. A vítima preferencial desse tipo de criminoso covarde é a pessoa em desenvolvimento que não conta com a necessária atenção. O mais comum é que o agressor estude suas vítimas potenciais e escolha aquela que conta com menos atenção e vigilância.
Por outro lado, negligenciar uma criança não é somente abandoná-la na rua à própria sorte (como de fato ocorre muitas vezes), mas também é não lhe dispensar a devida atenção, deixar de educá-la, de ensiná-la a se defender, não participar ativamente de sua vida e, até mesmo, negar-lhe um bom exemplo de vida.
A discriminação, por sua vez, está intimamente ligada aos crimes de pedofilia. Não são raras as vezes em que a criança ou adolescente que é vítima de abuso ou de exploração sexual passe a ser discriminada, como se ela fosse a culpada e não a vítima. Meninas e meninos são taxados de maliciosos ou sem-vergonha (quando não são usados termos bem mais pesados e chulos), acusados de se insinuarem ou provocarem o agressor, como se na relação entre o adulto agressor e a vítima menor de idade a criança fosse a parte responsável. O adulto é que tem a obrigação de ter responsabilidade e discernimento para, por exemplo, recusar o assédio equivocado de uma criança. Aliás, quando uma criança ou adolescente parece provocar sexualmente um adulto, ou o faz com inocência (geralmente mal interpretada pelo criminoso pedófilo) ou por falta do mínimo de educação e orientação, à vezes mau exemplo.
A discriminação também revitimiza a criança e o adolescente que já sofreram abuso ou exploração, prejudicando sua recuperação e incentivando sua permanência na situação de violência: “Se todos já pensam que sou uma prostituta, então é isso que eu vou ser...”, tive o desprazer de ouvir, certa vez.
Aliás, exploração sexual de menores de dezoito anos é uma realidade e se tornou fonte de lucro de criminosos inescrupulosos e covardes que se locupletam da prostituição infantojuvenil, aproveitando-se geralmente da miséria e da ignorância das famílias e dos próprios menores. Da mesma forma, outros criminosos ganham muito dinheiro com o comércio de pornografia infantil, sem se importarem em expor indecorosamente uma criança, sem se incomodarem com o fato de que as imagens e vídeos de pornografia infantil pesada, contendo cenas de estupro e tortura, evidentemente importam na grave violência contra a vítima exposta... e mais, a publicação dessa violência.
A criança e o adolescente historicamente são alvos preferenciais da violência, da crueldade e da opressão, em todas as suas mais diversas formas. A covardia dos agressores enxerga na pessoa em desenvolvimento alvo fácil para imposição de sua vontade, visando o lucro ou a satisfação pessoal, através da negligência, da violência psicológica, do trabalho infantil, da violência física, seja ela pura e simples agressão ou violência sexual, na forma de abuso (intrafamiliar ou extrafamiliar, com contato físico ou sem contato físico) ou exploração (prostituição infantojuvenil, turismo sexual, tráfico de pessoas, pornografia infantil).
Sigamos adiante. Indignados e produtivos. Vamos conhecer mais sobre os crimes de pedofilia e efetivar a proteção prioritária à criança e ao adolescente. Fazer valer a Justiça, como ideal, e cuidar do nosso maior bem, nosso futuro como seres humanos.
Combater os crimes ligados à pedofilia – que atingem diretamente todos os direitos da criança e do adolescente – é, em primeiro lugar, proteger a vítima, especialmente através do esclarecimento, da prevenção e do combate incansável ao ato criminoso.
Todos contra a pedofilia!
Carlos José e Silve Fortes (Casé)
Promotor de Justiça
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